|
A PEGADA DO BURRINHO
Das histórias do Cabril, a mais poética, e que nada tem a ver com os mouros, é a que nasceu da pegada do burrinho, que dizem estar gravada num pedra, no alto da Chã de Mouco.
Pois diziam os antigos, que quando S. José regressava do Egipto, para onde tinha fugido de Herodes, andou perdido por muitos caminhos, até que veio parar, já cansado, aos cimos da Serra de Alcaravela, com a Senhora e o Menino montados no burrinho que ele trazia pela arreata.
Quando entraram na área de Alcaravela, a passarada da charneca foi toda em bandos ao seu encontro, a esvoaçar em redor e a chilrear coros de melodias, que acordaram o Menino suavemente. Ele sorriu e a Mãe agradeceu. Até os animais selvagens e brutos, lobos, ursos, javalis, gazelas, cobras, raposas, bisontes, todos subiram dos seus esconderijos e pararam respeitosos à passagem da Criança que lhes acenava com a mãozinha.
A charneca saudou assim, carinhosamente, o Filho de Deus.
O cortejo caminhava sereno e festivo pela lomba da serra, até que, inesperadamente, se depara com o precipício do Vale do Cabril, fundo e perigoso. Estancaram. O burrinho também e com tal firmeza que a ferradura ficou marcada numa laje do chão.
Um pouco de atrapalhação para o cortejo. Como atravessar aquele vale escarpado, com a Mãe e o Menino tão frágeis?
O corvo fora sempre pronto e gentil. Pensam logo em ajudar a resolver o impasse da situação. Subiu a um monte de pedras, ali ao lado, bateu asas a impor silêncio total. Talvez o sublime daquela melodia tenha feito lembrar à Divina Criança, a voz harmoniosa dos anjos lá do céu. Em seguida fez sinal à passarada para que esperasse e desse largas aos seus gorjeios. Por fim levanta voo, dá três voltas, lá no alto, afasta-se ligeiro até se perder de vista ao longe.
Entretanto a passarada abriu roda em volta da Sagrada Comitiva. Cada um faz ouvir a sua habilidade sonora.
São José, inquieto, olhava distante. Lá longe, dos lados da que iria ser mais tarde Santa Clara, avista-se no ar, algo que brilha como ouro ou cristal. Era o corvo que trazia pendente do bico, uma colcha rica de ouro e brilhantes. O malandrote tinha feito mais uma das suas: roubara, em tempos, a uma patrícia romana, uma colcha da cama, que ele guardava escondida na toca de um sobreiro, na encosta da Cabaça.
Chegou. A passarada pasmava diante dos mil cadilhos da colcha que reflectiam o brilho do arco-íris. Pousou, e com a ajuda das outras aves, estendeu a colcha no terreiro e convida a Divina Comitiva a passar para a colcha com o burrinho. Então cada ave tomou no bico a ponta de um cadilho e a voar levantam a colcha estendida, com os sagrados peregrinos que assim vão transportando, suavemente, no espaço, por cima do vale, enquanto os animais não alados juntam as vozes numa vibrante saudação de adeus. O menino, lá no alto, olhava-os com simpatia.
Chegados a outra banda, pousam no cimo do Picoto. Os passageiros saem da colcha, agradecem e dispõem-se a seguir caminho, mas o Menino fala ainda:
-Moradores da charneca, fostes muito simpáticos e tu, corvo, muito gentil. Obrigado a todos. Não vos esquecerei. Um dia virá uma gente boa povoar e trabalhar esta charneca que irá florir e dar a esse povo generoso. Mas tu, corvo, o sublime cantor da serra vai entregar essa colcha à sua dona, que lha roubaste e não te pertence.
-Sim, mas...Gosto tanto dela... - respondeu o ladrão, como quem não está disposto a desfazer-se do seu tesouro.
Num adeus final S. José pega na arreata do burrinho e segue a marcha para Nazaré. A passarada, em cânticos variados, levanta voo para os seus ninhos. O corvo recolheu a colcha a pensar, indeciso na recomendação inesperada do Menino:
-Mas ela é tão bonita! Não...a estas horas a dona já tem outra, não precisa desta.
Toma-a no bico e levanta voo na direcção do esconderijo. Lá bem alto, arrependido já da boa acção que fizera em favor daquela gente, olha para o fundo do vale e vê, sentado num penedo, um pastor a comer um queijo. Cego pela gulodice desse manjar, larga a colcha ao vento e lança-se sobre o pastor. Só que este, ao ver o corvo aproximar-se, guarda o queijo na sacola e ele nem o cheiro lhe aproveitou.
Voa rápido na vertical para recuperar a colcha, mas não a vê mais, que o vento a tinha levado pelos ares, a foi dobrando até depositar na janela da fidalga romana.
O corvo impaciente, procurou-a por todos os lados da serra e, já desesperado ia rogar uma praga àquela Criança, mas a voz falhou-lhe. Reparou então que a sua voz era outra, voz rasgada, rouca, áspera, sem sonoridade, sem beleza, desagradável, ao contrário da maviosidade que tinha antes.
Daí por diante os corvos passaram a grasnar como os abutres e nunca mais cantaram como antigamente. Apesar de tudo continuou a procurá-la, ele, os seus filhos e netos, talvez na esperança de recuperarem um dia a voz perdida.
Dizem ainda os antigos, quando ouvem o crocitar dos corvos na Serra de Alcaravela:
-Lá andam eles à procura da fidalga!
# Colocado por PensarSardoal @ 01:00
0 Comentários!

0 Comments:
|
|